31 de julho de 2025
ECONOMIA

OPINIÃO: Na areia seca só brotam cactos...

As grandes crises são elementos relevantes para reavaliações morais

Por Alexandre Lyra. Edição: Política Real
Publicado em
Cactus em meio as pedras Foto: Tom plantas

por Alexandre Lyra*

Assim como a terra nos dá frutos e hortaliças, proporcionando prazeres degustativos na medida em que nos mantém vivos, também a sociedade cultiva seus projetos a partir de sementes. A Índia, por exemplo, testemunhou o audacioso e inovador projeto de Gandhi, que germinou uma contestação pacífica, cultivada em meio ao descrédito inicial, que levou seu país à revolucionária independência. Ele adubou essa política alternativa, inconcebível até então, em cada centímetro cúbico que podia, sensibilizando aos poucos um povo ávido por independência, para alcançar a soberania política pela via inusitada da resistência pacífica. E assim vai a humanidade, avançando com a abertura e fertilidade mental em algumas épocas e paralisando quando há aridez nos solos em outras.

A sociedade moderna com o Estado democrático de direito é o projeto mais avançado e complexo já tentado, pensado por muitas mentes brilhantes, abraçado por várias sociedades, para superar um problema comum na grande maioria dos modelos anteriores, o autoritarismo, contando decisivamente com a multiplicação da produtividade ocorrida a partir da revolução industrial para contornar a disputa ferrenha pelos recursos disponíveis, a regra até então. Sua execução, entretanto, mostra que mesmo ela não está isenta de contradições, especialmente no que diz respeito à inclusão econômica de grupos mais fragilizados.

Enquanto os primeiros países se embrenhavam na experiência da industrialização, parecia haver êxito na melhoria da distribuição de uma riqueza multiplicada, ainda que tivesse de haver pressão dos trabalhadores por aumentos salariais e redução de jornadas de trabalho, mas depois, quando outros países foram tentar entrar na festa atrasados, começaram a cobrar senhas, a confraternização passou a ser de um clube fechado, mostrando limites do que inicialmente prometia ser uma solução acessível a todos.  Desde o começo era sabido que o premissa central da liberdade tinha repercussões diferentes para o campo social e o econômico, pois no primeiro todos são iguais perante a lei, enquanto no mercado cada um ascende na medida de suas iniciativas, havendo necessariamente desigualdades, porém a discrepância começou a aumentar muito e em algumas nações os níveis de pobreza pouco mudaram. O que deu errado?

Posteriormente os estruturalistas (incluindo Celso Furtado) e outros críticos (como Marini) explicaram que o processo de desenvolvimento socioeconômico dos países centrais está interligado com o processo de relativo ou absoluto subdesenvolvimento de países periféricos. Há riqueza, mas novamente, como sempre ocorreu na história, ela terminou concentrada nas mãos de poucos, sendo que agora não de forma autoritária, já que o jogo passou a ser livre e democrático, sendo viabilizada uma aceitação social com a distribuição de uma parte dela, que acabou logo.

Nas democracias modernas as questões sociais podem ser discutidas por todos, então as elites têm de ter o apoio de doutrinas morais para convencer a população acerca da eficiência do mercado, para ela própria defender o sistema. Antes as morais social e econômica eram detalhes porque o povo não tinha alternativa além da obediência às determinações da elite dominante, mas agora os marcos morais têm um peso na definição dos rumos a seguir. Resta a maioria da população se livrar das manipulações da elite para manter as discrepâncias e encaminhar a discussão de ideias e projetos no sentido de diminuir a desigualdade de renda.

As grandes crises são elementos relevantes para reavaliações morais, elas nos mostram situações mais graves, nos confrontando em relação a princípios morais estabelecidos, nos forçando a mudanças de paradigmas. No campo econômico, a crise de 29 fez isso ao mostrar pela primeira vez a fragilidade de mercados desregulamentados, convencendo na marra o mainstream a alterar a forma do Estado atuar na economia. Os anos seguintes foram de prosperidade nos países centrais ocidentais, com permissão de alguma industrialização na periferia até chegar o fim do socialismo de Estado, que reativou o ânimo dos agentes dos mercados para recuperar o modelo liberal mais visceral, diminuindo significativamente a ação ‘excessiva’ do Estado. Os políticos convenceram a sociedade disso e os governos entraram em sintonia com uma nova ordem econômica liberal mais social, que, contudo, terminou com a queda do socialismo e a volta do liberalismo mais radical, que levou os países a novas grandes crises mundiais (2008). A administração governamental dessas crises recentes (Obama nos EUA) salvou grandes empresas sem punir responsáveis, e até manteve nomes que já estavam no comando das áreas econômicas do governo antes e durante a crise. Se instala um deserto ético.

Os cidadãos comuns podem não entender dos mecanismos complexos da economia, mas sabem dos princípios morais básicos que fundamentam o sistema como um todo e captaram que, de um lado, os liberais e grandes agentes (executivos) que geraram a crise e faturaram alto com ela não foram punidos, maculando o neoliberalismo, e de outro, a intervenção estatal protegeu grandes empresas enxertando recursos públicos nelas e não fez nada pelos pequenos investidores que perderam tudo no processo nem pelos desempregados no processo, manchando a concepção keynesiana. As economias foram debilitadas por agentes predatórios que não foram contidos por mudanças de postura moral do governo, ao contrário, agentes poderosos tomaram conta do Estado, o corromperam, abandonaram milhares de pessoas na pobreza ou miséria e ficaram impunes.

Para onde vão os órfãos das doutrinas econômicas clássicas? A lição de moral que fica é que não importa a orientação teórica e política dos mandatários, a elite econômica domina o sistema, um sistema bruto de vale tudo, restando à população tentar se proteger. Com a demonização do comunismo, o saldo disso tudo é o ressurgimento do fascismo, uma vertente de extrema direita que oferece amparo moral às pessoas fragilizadas em territórios arrasados, prometendo dignidade a seus adeptos. O problema é que agora não podem contar com o modelo intervencionista keynesianismo (usado na década de 1930) para levantar as economias, tendo de lidar com um neoliberalismo desvairado e multimilionários digitais dispostos a exercer seu poder na economia, que não vai fornecer meios de reerguer essas sociedades, vão ficar apenas com medidas econômicas paliativas e garantia de supremacia social e religiosa.

Ainda há uma parte da elite preocupada com a construção de uma sociedade para todos, apostando na construção harmônica, ante a outra parte crescente que quer apenas aumentar seus ganhos ignorando o grosso da população, que joga suas fichas num modelo conflituoso. A economia depende da defesa de princípios morais e de seu exercício por meio da política. É necessário ter clareza acerca do que cultivar e como tratar a terra. Não faz muito tempo geramos sociedades relativamente exitosas na distribuição da renda, embora não tenhamos conseguido estender o padrão para todos povos.

A questão é que sociedade queremos e podemos construir, e isso depende do nível do debate contemporâneo, da disseminação e clareza das ideias discutidas. Uma plantação precisa de cuidados diversos e de conhecimento, senão temos plantas danificadas por falta ou excesso de hidratação, afetadas por pragas, queimadas ou subnutridas, onde ervas daninhas se instalam e progridem. Recuperar o deserto ético neofacista, consertar seus problemas, é difícil como recuperar rios assoreados e terras envenenadas por anos de agrotóxico, é preciso dar oportunidades a todos e distribuir a renda. É coisa de longo prazo, é preciso persistência, mas é a única alternativa que temos para reestabelecer um convívio social sadio.

* Professor titular do departamento de economia da Universidade federal da Paraíba.