31 de julho de 2025
Geopolítica do século 21

IA: a grande aposta dos EUA de Trump

E os limites de uma hegemonia em declínio.

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Entre a bolha da IA e o poder do porrete: como os EUA administram seu declínio com apostas arriscadas, enquanto Rússia e China constroem alternativas para mudanças que estabelecem um novo equilíbrio global. Reprodução / Fotor

O mundo assiste, num misto de fascínio e apreensão, ao espetáculo de uma superpotência a jogar os seus últimos trunfos. Os Estados Unidos, perante os sinais inegáveis de uma fragilidade interna na economia, lançaram-se numa aposta colossal, cujos resultados podem redefinir a ordem global nas próximas décadas. Esta estratégia assenta num pilar doméstico de risco elevado: a bolha de inteligência artificial (IA), que numa projeção externa de poder atualmente na versão recuperada do século XIX e de antes do pós-guerra (big stick), destinada a mascarar vulnerabilidades e a garantir os recursos necessários para sustentar a primazia tecnológica. No cerne desta jogada está a convicção de que a IA pode ser o motor solitário de uma economia que, sem ela, estaria à beira da estagnação.

 

Os gráficos trazidos esta semana pelo economista Michael Roberts, não mentem: cerca de 80% dos ganhos bolsistas norte-americanos em 2025 foram gerados pelo setor de IA. O Indicador Buffett (métrica que compara a capitalização total do mercado de ações com o Produto Interno Bruto - PIB) atingiu níveis históricos, sinalizando uma valorização especulativa que recorda os excessos de um passado não tão distante da “bolha imobiliária” dos anos 90 que resultou na quebradeira de 2007/2008. O  que o economista Roberts - autor do livro The Great Recession - nos traz é que a euforia financeira atual esconde, agora, uma realidade mais sombria. O crescimento do PIB real tem sido sustentado quase exclusivamente pelo investimento maciço em data centers (infraestruturas físicas que abrigam sistemas computacionais, equipamentos de rede dedicados a processar, armazenar e distribuir grandes volumes de dados, com grande uso de energia).

 

Sem este setor, a economia dos EUA teria crescido apenas 0,1% no primeiro semestre de 2025. Enquanto isso, o consumo robusto é um privilégio de apenas 20% mais ricos, num cenário em que o mercado de trabalho mostra sinais de fraqueza e o setor de serviços caminha ainda mais para a estagnação. É uma economia de duas velocidades, perigosamente apontada por Roberts, que se estrutura cada vez mais dependente de um único motor superaquecido: as IAs.

 

Cortinas de Fumaça

 

Desta forma, podemos reparar um padrão na diplomacia estadunidense, que vai do desespero a alianças de conveniências. Consciente desta fragilidade, a administração  norte-americana recorreu a um manual clássico de poder: a distração externa e a garantia de recursos vitais. A elevação da Arábia Saudita à categoria de “aliado maior não pertencente à Organização do Tratado Atlântico Norte (OTAN)” não foi um mero gesto diplomático. Foi a negociação de um salva-vidas.

 

A promessa de um trilhão de dólares em investimentos sauditas fornece capital para alimentar a bolha tecnológica e financiar a dívida pública. Em troca, Washington oferece proteção militar e garante o fluxo estável de energia (petróleo) - vital para os vorazes centros de dados de IA. Paralelamente, assistimos a uma escalada belicista no “quintal americano”: a América Latina.

 

As ameaças militares à Venezuela, Colômbia e México, sob o pretexto do surrado combate ao narcotráfico, funcionam como uma “cortina de fumaça” para desviar a atenção dos problemas domésticos. O objetivo real é transparente: controlar as vastas reservas de petróleo venezuelano, assegurando um recurso estratégico e minando um aliado energético de Moscou e Pequim.

 

Esta demonstração de força é também um recado claro a outras potências: os EUA mantêm-se como o poder hegemônico na sua esfera de influência direta, mesmo que a base doméstica dessa hegemonia esteja sendo vista à olho nu escorrendo de maneira rápida e quase instantânea.

 

Mundo multipolar 

 

Neste cenário, as ações dos EUA encontram respostas da China e da Rússia, arquitetos do novo mundo multipolar que vai se consolidando, ao lado da Índia e dos países do Sul Global reunidos em fóruns como os “BRICS+” e a Organização para Cooperação de Xangai (OCX), que reúnem países até então considerados periféricos da ordem capitalista comandada pelos norte-americanos ao lado das nações europeias.

 

Enquanto os EUA gerem o seu declínio relativo com táticas de curto prazo, os seus principais rivais estratégicos avançam com planos de longo prazo assentados na soberania e na construção de sistemas alternativos. A Rússia, longe de ter sido enfraquecida, vem emergindo do conflito na Ucrânia como um polo de poder consolidado. Os “plano de paz” de Trump, que basicamente aceita as exigências russas, representa uma retirada estratégica de Washington. É o reconhecimento tácito de que a tentativa de estrangular a Rússia falhou.

 

O reforço militar da Rússia em Kaliningrado, um enclave russo no leste-europeu cercado pela OTAN e o plano nacional russo de IA, amarrado à sua estratégia de se vincular ao uso da energia nuclear, em que é líder global, mostra um país que investe na sua autossuficiência tecnológica e militar.

 

A China, por sua vez, age como um contrapeso sistêmico. A sua afirmação como líder em pesquisa médica e o desenvolvimento de defesas antimísseis de última geração desafiam a hegemonia tecnológica norte-americana. A sua diplomacia, visível na mediação entre a Arábia Saudita e o Irã e na consolidação do BRICS e OCX, constrói uma arquitetura internacional paralela à liderada por Washington.

 

O aviso firme ao Japão contra o rearmamento do país asiático, derrotado pelos EUA na Segunda Grande Guerra, demonstra a sua determinação em definir os limites da sua esfera de influência no Oceano Pacífico. O mundo não é bipolar; é cada vez mais tripolar, com centros de poder em Washington, Moscou e Pequim a operarem com lógicas e alianças distintas.

 

E o Brasil?

 

Neste xadrez global, o Brasil entra neste jogo geopolítico entre a liderança do mundo pós-petróleo e a vulnerabilidade de ainda estar preso às lógicas do século XIX e XX, que não cabem mais no século 21.

 

Sob a liderança do presidente Lula, o país tenta navegar com uma “diplomacia de ponte”. A COP-30, embora esvaziada pelo conjunto de nações que ainda permanece preso e dependente da economia petrolífera, consagrou o Brasil como uma superpotência verde e uma voz respeitada do Sul Global.

 

A tentativa de mediação entre a Rússia e a Ucrânia e o esforço para “convencer Trump” sobre a crise climática refletem esta ambição. No entanto, esta postura esbarra na realpolitik agressiva das grandes potências. O Brasil arrisca-se a ser um pivô sem alavanca se não conseguir transformar a sua liderança moral em alianças concretas e em projetos de soberania tecnológica e econômica.

 

O incidente do “aulão de IA” no Mineirão, que terminou em caos, é um símbolo perfeito dos desafios internos. A importação acrítica de modelos tecnológicos estrangeiros, sem um projeto nacional claro, gera dependência e conflito. Enquanto a Rússia avança com um plano soberano de IA, no Brasil o debate fica restrito entre a subordinação às big techs norte-americanas e a construção de um caminho próprio.

 

A exploração da margem equatorial expõe uma contradição interna entre o discurso de sustentabilidade e a pressão por um crescimento baseado em combustíveis fósseis altamente responsáveis pelos gases do efeito estufa, que põem em xeque a permanência da humanidade no planeta.

 

Inflexão histórica

 

A estratégia dos EUA é um reflexo do declínio relativo, não de seu renascimento. É uma gestão de crise que combina uma aposta financeira de alto risco com o keynesianismo militarista e realinhamentos pragmáticos. O abandono tático da Ucrânia para se concentrar no combate ao mundo multipolar já colocado em prática por China e Rússia é a admissão de que os recursos são finitos e que o confronto principal já não acontece no “centro” do até então capitalismo liderado pelos EUA e, sim, se desloca cada vez mais rápido para os países da região do Oceano Pacífico.

 

O risco sistêmico, nos EUA, permanece e aumenta. O estouro da bolha da IA, desencadeada por lucros decepcionantes ou abaixo das expectativas ou por um choque energético, não seria apenas uma crise financeira. Seria uma crise de legitimidade do modelo econômico estadunidense, com efeitos de contágio generalizado.

 

Dado o atual momento da conjectura política mundial, podemos afirmar que estamos num momento de transição histórica, onde a velha ordem unipolar dá lugar (mesmo que não queira) a uma nova multipolaridade, já gestada e em pleno crescimento e desenvolvimento. A forma como esta transição se dará – de forma ordenada ou através de conflitos e crises em cadeia – dependerá dos próximos movimentos neste complexo xadrez geopolítico. O tempo não está do lado de quem aposta tudo numa só jogada.

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