ESPECIAL DE FIM DE SEMANA: Prisão de senador realça brechas constitucionais
Redação imprecisa do texto da Constituição provocou polêmica extra na decisão do Senado de manter a prisão do líder do governo, Delcídio do Amaral
(Brasília-DF, 27/11/2015) As imprecisões constitucionais provocaram um grande debate também, e ainda mais, no caso da prisão do líder do governo no Senado, Delcídio do Amaral (PT-MS), na última quarta-feira, 25. A redação da Carta Magna é feita de forma a dar margem para interpretações, ao invés de conter frases, períodos e orações de maneira direta, com uma clareza que não deixasse nenhum tipo de dúvida. Foi mais uma polêmica no plenário, antes da votação propriamente dita, para autorizar ou não a manutenção do encarceramento do senador já preso pela Polícia Federal.
O primeiro a levantar a questão, logo depois de iniciada a sessão no plenário, foi o líder do PSDB, Cássio Cunha Lima (PB), assim que o presidente da Casa, Renan Calheiros (PMDB-AL), terminou de ler o ofício do Supremo Tribunal Federal (STF), com os autos da prisão do petista. A intervenção de Cássio Cunha Lima tinha já uma motivação. Havia comentários no Senado, desde que Delcídio do Amaral foi encarcerado na manhã de quarta-feira, que a votação seria secreta. O que ficaria confirmado logo em seguida na sessão única do plenário, que começou depois das 17h, para deliberar sobre a autorização para prender o líder do governo.
Debate
Cássio Cunha Lima fez, da tribuna do plenário, a observação de que a votação teria de ser aberta porque o termo “secreta” havia sido retirado da Constituição de 1988, quando ouve a revisão da Carta Magna, em 2001. Sua argumentação estava centralizada na ideia de que se não tiver explícito no texto constitucional, os votos dos senadores teriam de constar no painel eletrônico para o conhecido de todos.
A partir da intervenção do líder do tucano, houve então intenso debate sobre o assunto. Inclusive, com o próprio Cássio Cunha Lima afirmado em sua “questão de ordem” que era necessário captar a “intenção” do legislador. Sua preocupação, junto com a de outros senadores como Randolfe Rodrigues (Rede-AP) e Aécio Neves (MG), tinha motivo de ser. Renan Calheiros leu a “interpretação” da assessoria da presidência do Senado: o voto teria de ser secreto. E todos sabiam que, secretamente, as chances de Delcídio do Amaral ser solto na mesma quarta-feira seriam maiores.
Sem segredo
No final dos debates, Renan Calheiros optou por deixar a decisão para o plenário. Os senadores, então, decidiram, no voto, contra o que havia resolvido o presidente da Casa. Foram 52 votos contra 20 e uma abstenção. Prevaleceu a tese de que manter ou não Delcídio do Amaral em prisão preventiva teria a posição de cada senador conhecida de todos, apresentada no painel eletrônico. O resultado final, por 59 votos contra 13 e uma abstenção, foi pela convalidação da determinação do STF, cumprida pela Polícia Federal.
Adjetivação
“Atente bem que o Constituinte originário fez questão de adjetivar o voto. Ele qualificou esse voto: voto ‘secreto’. Havia uma deliberação do Constituinte originário de qualificar esse voto, emprestando-lhe um adjetivo: ‘secreto’. Ocorre que, em 2001, o Congresso revisor, o Constituinte derivado, podemos assim definir ― porque a própria Constituição de 1988, reconhecendo-se imperfeita, previu a possibilidade de sua modificação ―, aprovou uma nova dicção, uma nova redação para o mesmo dispositivo, que passou a vigorar com a seguinte redação, a partir da Emenda nº 35, de 2001”, sustentou Cássio Cunha Lima, no início da sessão.
O líder do PSDB disse em seguida como ficou a redação da Carta Magna depois da revisão: “Art. 53. Os deputados e senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos. (...) § 2º Desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável. Nesse caso, os autos serão remetidos dentro de vinte e quatro horas à Casa respectiva, para que, pelo voto da maioria de seus membros, resolva sobre a prisão. Observe que o legislador derivado retirou o adjetivo. E, ao retirar o adjetivo ‘secreto’, deixa de qualificar esse voto. Na modalidade de escrutínio, nós temos o voto secreto e o voto aberto.”
“Respeito”
“Portanto, a presente questão de ordem, com base no art. 403 e com fulcro na Emenda Constitucional nº 76, que promoveu alterações também nos casos de cassação e de vetos ― e aí eu faço o argumento por analogia, porque quem pode o mais pode o menos. Ora, se o Congresso Nacional modificou a Constituição para que os processos de cassação passassem a ser objeto de voto aberto, muito menos a decisão de uma prisão ou de seu relaxamento. Se nós estaremos, por comando constitucional, obrigados a votar de maneira aberta no caso de cassação de mandato, muito mais estaremos obrigados a fazê-lo no caso em espécie, para que possamos ter, como é o desejo de todos, o acompanhamento de toda a sociedade que aqui representamos, porque vivemos numa democracia representativa e é nosso papel representar uma sociedade inteira para que possamos respeitar a Constituição”, afirmou Cássio Cunha Lima.
O líder do PSDB comunicou ao plenário que o senador Randolfe Rodrigues já havia impetrado mandado de segurança no STF para garantir a votação aberta. “Aquilo que poderia ser um voto secreto logo adiante se transformará em um voto aberto. Não vou entrar no mérito se o melhor caminho é o voto aberto ou secreto, mas posso garantir que a melhor trilha é a Constituição”, acrescentou Cássio Cunha Lima. Sua intenção foi alertar que o STF poderia decidir contra a votação secreta, o que acabou acontecendo na mesma quarta-feira, em despacho do ministro Edison Fachin.
Competência
A partir desta intervenção de Cássio Cunha Lima, instalou-se a polêmica e o debate no plenário. Muitos parlamentares manifestaram-se, num plenário lotado até com deputados, ansiosos para saber o resultado. O senador Jader Barbalho (PMDB-PA) fez um discurso emocionado em defesa do regimento interno e do voto secreto. “A Casa é quem decidiria, como o Supremo Tribunal Federal é regido pela Constituição, mas ele tem um Regimento Interno. O Constituinte preservou a competência de todos nós para gerenciarmos os nossos problemas internos. E nós gerenciamos. O art. 291 do Regimento Interno estabelece. Se o Constituinte quisesse estabelecer de forma clara que o voto seria aberto, ele teria qualificado o voto. Não! Ele simplesmente manteve o texto, dizendo que a decisão era do Senado e, portanto, o Senado decidiu estabelecendo no regimento. Sábios os que interpretam a lei, e não cabe a ninguém interpretar mais do que está escrito, mais do que está no texto”, afirmou.
Jader Barbalho disse ainda que muitos de seus colegas, naquele momento, estavam mais interessados em ficar bem com a opinião pública. “Talvez a minha posição não seja a mais confortável. A mais confortável, neste momento, é a do outro lado. A mais confortável ― não sei se tanto ― é a de alguns outros que desejam se apresentar à opinião pública como transparentes. Eu não preciso. Eu não preciso e creio que a maioria desta Casa, senadoras e senadores que chegaram aqui pelo voto direto, fazendo carreira pública, não precisa, neste momento, passar e reivindicar um atestado de que são capazes de serem transparentes”, disse.
Sem contradição
O líder do governo no Congresso, senador José Pimentel (PT-CE), fez também a defesa do regimento interno do Senado, alegando que não havia mais a palavra “secreta” na Constituição. O líder do PT, Humberto Costa (PE), ressalvou que não poderia contradizer o que já havia defendido, anteriormente, e comunicou também a decisão do STF: “Eu gostaria de fazer o meu encaminhamento, até porque, de forma alguma, eu poderia entrar em contradição com a posição que defendi anteriormente. Felizmente, há poucos minutos, o Supremo Tribunal Federal tomou uma decisão sobre se o voto, na definição de prisão de um Senador, deverá ser aberto ou não. Essa decisão acabou de ser tomada, e o voto deverá ser aberto, a partir de agora.”
Declaração de voto
Humberto Costa fez questão de salientar que não se tratava da votação do mérito ― a decisão do Senado se concordaria ou não com a determinação do STF. Realmente, os oposicionistas tinham razão em preocuparem-se com a forma de votação. Mesmo parlamentares aliados do governo já foram logo declarando o voto, diante da possibilidade de votação secreta. O presidente do Senado foi muito claro em sua decisão, antes de submetê-la ao plenário. “Resolvo que a votação da presente matéria se dará na modalidade secreta, no estrito cumprimento do disposto na alínea ‘c’ do inciso I do art. 291 do regimento interno do Senado Federal.”
Antes de fazer este comunicado, Renan Calheiros leu o parecer da assessoria da presidência da Casa. E fez uma ressalva: “O julgamento que nos compete fazer é se pode, sim, o Supremo Tribunal Federal, como faz hoje, por decisão de uma turma, prender preventivamente um Senador no exercício do mandato, sem que tenha culpa formada em crime inafiançável. É essa decisão que é a primeira da República. É a primeira da República.” Renan Calheiros repetiu a observação algumas vezes durante o processo de votação, inclusive o que decidiu pela manutenção da prisão de Delcídio do Amaral.
Origem das “brechas”
O ex-presidente do STF, Nelson Jobim, contou uma história que explica o porquê de a Constituição precisar ser interpretada. Como secretário-geral da Constituinte, que elaborou a Constituição de 1988, ele disse que recebia ordem do então presidente da Câmara dos Deputados, Ulysses Guimarães (PMDB-SP), para redigir artigos de forma clara, indiscutível. Nelson Jobim afirmou que quando cumpria a ordem, a chance de aprovação do artigo era nula. E que a probabilidade de aprovação do texto ia aumentando à medida que fazia uma redação que deixava, exatamente, brechas para interpretação.
Jurisprudência
Depois da decisão do Senado na quarta-feira, Renan Calheiros fez a ressalva de que o resultado da votação criaria uma espécie de jurisprudência sobre prisão de parlamentar no exercício do mandato. Mas deixou uma crítica: “Quando o arquiteto fez essa praça aqui, a Praça dos Três Poderes, ele não colocou nenhum Poder no meio, no centro. Ele colocou cada um dos Poderes em um lado: de um lado fica o Palácio do Planalto, do outro lado fica o Supremo Tribunal Federal, e do outro lado fica o Poder Legislativo.”
E acrescentou: “Acho que a ocupação desses espaços deve ser feita harmonicamente, com independência. E acho que é indevido atravessarmos, grilarmos função de qualquer Poder, do Legislativo ou do Judiciário. Da mesma forma que me cabe, como presidente do Senado Federal e do Congresso Nacional, defender, mesmo que essa não seja a decisão da maioria da Casa ― e eu me curvo à decisão da maioria da Casa ―, as prerrogativas do Senado Federal.”
Num gesto incomum, Renan Calheiros não compareceu ao seu gabinete na presidência no Senado no dia seguinte à votação, quinta-feira, 26. Ele e outros senadores também são investigados pela Operação Lava Jato, da Polícia Federal, que levou para a cadeia Delcídio do Amaral
(Valdeci Rodrigues, especial para Política Real. Edição de Valdeci Rodrigues)