31 de julho de 2025
OPINIÃO

ARTIGO: Injúria Racial, Racismo e Bullying: A Violência Invisível que Devasta Vidas

Frente a esse vendaval de agressões, a passividade não é neutralidade – é conivência. O antídoto começa no agora

Por Chico Araújo
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Entenda com Chico Araújo! Foto: Jornal Regional

Por Chico Araújo (*)

 

Imagine uma palavra solta no ar – "macaca", "preto fedido" – que, em vez de evaporar, ecoa como um soco no peito, repetindo-se dia após dia até roubar a voz, o sono e, por fim, a própria identidade. No Brasil, terra de uma diversidade étnica e cultural que deveria ser sinônimo de orgulho coletivo, o racismo não é relíquia de um passado colonial, mas uma ferida exposta que pulsa no cotidiano, minando a dignidade humana e sustentando abismos de desigualdade. O que inicia como uma injúria racial camuflada de "brincadeira" inofensiva pode, sem alarde, evoluir para um pesadelo avassalador: ciclos viciosos de bullying e discriminação que isolam as vítimas, pulverizam sua autoestima e, nos cenários mais sombrios, pavimentam caminhos para depressão, abandono escolar ou até o abismo do suicídio. Neste artigo, mergulhamos no coração do arcabouço jurídico brasileiro, guiados por doutrinas afiadas, artigos legais precisos e relatos crus do dia a dia, para mapear não apenas as fronteiras desses crimes, mas os passos concretos e urgentes para enfrentá-los. E, desde o início, uma verdade inescapável: o racismo não se confina à cor da pele; ele se alastra por etnias, origens nacionais, religiões e até condições sociais, erguendo-se como um ataque frontal à igualdade que o Estado é obrigado a combater com toda a força da lei.

 

Para compreender essa teia de dor, é essencial desatar os nós conceituais que a tecem. O racismo, em sua raiz mais profunda, vai além de um gesto impulsivo: trata-se de uma engrenagem de poder que classifica e subordina pessoas com base em traços identitários, operando ora nas sombras da sutileza, ora na crueza da agressão aberta, e sempre barrando o caminho para direitos básicos e igualitários. A injúria racial, por outro lado, é o golpe direto na honra de um indivíduo, envenenado pelo veneno do preconceito racial. Já o bullying surge como uma repetição cruel de intimidações e humilhações, e, quando ancorado em raça ou etnia, invade o domínio do racismo propriamente dito, desmascarando o que tantos insistem em rotular como mera "brincadeira inocente". Essas linhas se entrelaçam de forma inseparável: o bullying impregnado de racismo não é uma "zoação" passageira, mas uma microagressão que fortalece o preconceito enraizado na sociedade. Como alerta a educadora parental Lua Barros, o que as escolas frequentemente encobrem como bullying é, na verdade, racismo disfarçado, demandando uma análise afiada para evitar que o sofrimento seja subestimado. Assim, uma ofensa isolada não fica no vácuo; ela se alastra, convertendo-se em um tormento compartilhado, onde a vítima absorve o ódio externo e o transforma em uma prisão interna, alimentando um redemoinho de violência psíquica que parece não ter fim.

 

É nesse contexto que o Direito brasileiro se impõe como um baluarte, erguendo defesas cada vez mais robustas contra essas invasões à humanidade. Ao longo dos anos, o ordenamento evoluiu para fundir ofensas pessoais em crimes de ressonância coletiva, transformando o individual em um grito pela justiça social. No centro dessa fortificação está a Lei nº 7.716/1989, a icônica Lei de Racismo, cujo artigo 1º criminaliza "praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional", com reclusão que varia de dois a cinco anos. Aqui reside uma lição vital: o racismo não para na cor da pele. O parágrafo único do artigo 20, por exemplo, amplia o alcance para punir quem discrimina por "procedência nacional" – pense em imigrantes ou povos indígenas – ou por crenças religiosas, como ataques a muçulmanos ou judeus. Essa visão ampla ecoa a solidez da Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, inciso XLII, que rotula o racismo como crime inafiançável e imprescritível, incumbindo o Estado de uma caçada incansável contra o mal. A injúria racial, que antes era relegada aos delitos contra a honra no Código Penal (CP), ganhou peso com a Lei nº 12.033/2009 e, sobretudo, com a Lei nº 14.532/2023, que reformulou o artigo 140, § 3º, do CP: reclusão de um a três anos mais multa para quem "ofender a dignidade ou o decoro de alguém" por razões de "raça, cor, etnia, religião, origem ou contra a pessoa idosa ou portadora de deficiência". Equiparável agora ao racismo pela mesma lei de 2023, a injúria racial herda o status de imprescritível e inafiançável, silenciando antigas controvérsias doutrinárias sobre sua suposta leveza. Em resumo, o que outrora era um ferimento privado ascende a crime hediondo, com penas que se acumulam em caso de reincidência. E o bullying? A Lei nº 14.811/2024 avança ao tipificá-lo de vez, com detenção de seis meses a dois anos para intimidações sistemáticas – especialmente o ciberbullying contra crianças e adolescentes. Quando entrelaçado ao racismo, a pena sobe em um terço, fundindo-se à Lei de Racismo. Normas como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, Lei nº 8.069/1990), em seu artigo 232, complementam o arsenal, punindo com detenção de seis meses a dois anos quem submete menores a vexames públicos. Juntas, essas ferramentas tecem uma rede interseccional, admitindo que o bullying racial não é um incidente avulso, mas o braço alongado de um preconceito que permeia tudo.

 

Essa armadura legal não brota do vazio; ela é temperada pelas chamas da doutrina penal brasileira, um arsenal de reflexões críticas que clama por uma punição equilibrada, porém inexorável. Cezar Roberto Bitencourt, em seu Tratado de Direito Penal (edição 2020), cutuca as feridas dos "muitos equívocos" ao equiparar toda injúria a um racismo em escala total (BITENCOURT, 2020, p. 321), pois a ofensa singular diverge da discriminação em massa, sob risco de ferir o cerne da proporcionalidade. Ainda assim, Bitencourt aplaude a equiparação moderna: "a injúria racial não é mero xingamento, mas um vetor de perpetuação do preconceito, exigindo penas que reflitam sua gravidade social" (BITENCOURT, 2020, p. 350). Essa perspectiva astuta harmoniza o pessoal com o público, insistindo que negligenciar o pano de fundo racial reduz a lei a um pergaminho inerte (BITENCOURT, 2020, p. 354). Damásio de Jesus, titã da doutrina, ressoa em Direito Penal com uma advertência similar: fundir injúria e racismo sem matizes ataca a proporcionalidade, já que "trata-se de uma ofensa à honra, não à ordem pública em si" (JESUS, 2020, p. 290). Mas ele saúda a Lei 14.532/2023 como um acerto de contas, elevando a injúria sem apagar sua singularidade: "O racismo, em todas as suas formas, é um atentado à dignidade humana, e o Direito Penal deve ser o último bastião contra sua banalização" (JESUS, 2020, p. 56). Essas vozes potentes não se limitam a decifrar códigos; elas convocam uma aplicação da lei com delicadeza e firmeza, que transcenda a cor da pele para englobar etnias e raízes, impedindo que o ódio se esconda atrás de um riso forçado como "piada".

 

No entanto, é nos fios da realidade cotidiana que a teoria se entrelaça com o sofrimento cru, transformando abstrações em cicatrizes vivas. Pense na menina de 8 anos no Rio de Janeiro, em 2024, que entra na escola com o coração leve e ouve da própria professora: "Vocês são macacas". A educadora, detida em flagrante por injúria racial, revelou o quão traiçoeiro pode ser o espaço da aprendizagem – um santuário que vira campo de batalha racista (AGÊNCIA BRASIL, 2024). A criança, marcada para sempre, jurou nunca mais pisar ali, encarnando o terror de uma ofensa que se ramifica: bullying incessante, solidão asfixiante e o roubo brutal da infância. Ou reflita sobre os irmãos negros em Niterói (RJ), em 2024, divididos por escolas distintas, mas unidos no inferno de insultos simultâneos – um rotulado de "preto fedido", o outro ridicularizado pelo cabelo (INSTAGRAM, 2024). Os boletins de injúria racial na cidade explodiram em quatro vezes, expondo um racismo rotineiro que se mascara de travessura escolar. E que dizer da aluna do 9º ano em uma escola particular de São Paulo, bombardeada por pares com "Seu cabelo é de Bombril, serve pra limpar panela", enquanto era pisoteada fisicamente? O colégio, em vez de proteger, encolheu os ombros para o "bullying coletivo disfarçado de brincadeira" (CARTA CAPITAL, 2024). Episódios assim – rotineiros em salas de aula, bondes lotados ou feeds de redes sociais – provam que o racismo ignora calendários: devasta infâncias, adultez e velhices, estendendo garras além da cor para dilacerar etnias indígenas ou fés minoritárias, como os nordestinos estigmatizados como "inferiores".

 

Frente a esse vendaval de agressões, a passividade não é neutralidade – é conivência. O antídoto começa no agora: corra para registrar um Boletim de Ocorrência (BO) na delegacia ao lado ou pela Delegacia Virtual online, tecendo um relato minucioso com fatos, testemunhas e evidências irrefutáveis (fotos, gravações, capturas de tela). Em injúria racial ou racismo, o Ministério Público (MP) toma as rédeas, graças à ação penal pública incondicionada – a vítima não precisa erguer a bandeira sozinha. Se o alvo for o bullying nas escolas, invoque o Conselho Tutelar (artigo 136 do ECA) e pressione a direção por uma apuração imediata, com intervenções educativas como círculos de diálogo antirracista. A Lei 14.811/2024 obriga as instituições a protocolos de alerta, como alertar o MP em 24 horas para assédios digitais. Ao mesmo tempo, persiga a cura financeira: ingresse com ação de danos morais no Juizado Especial Cível (até 40 salários mínimos, sem exigência de advogado), onde indenizações oscilam de R$ 5 mil a R$ 50 mil, calibradas pela profundidade da lesão. Nas trilhas virtuais, aponte o dedo para o provedor (Instagram, X) e para o SaferNet, que funila as denúncias ao MP. No plano da alma ferida, abrace o acolhimento do SUS via CAPS ou entidades como o Instituto Geledés. E o poder público? Deve semear educação antirracista, como manda a Lei 10.639/2003, tornando obrigatório o estudo da história afro-brasileira nas salas de aula – um antídoto preventivo contra o ódio que germina no silêncio.

 

No fim das contas, uma injúria racial ignorada não desvanece no ar: ela se alastra como erva daninha, florescendo em bullying, ancorando o racismo e convertendo existências em labirintos de pesadelos perenes, tal como nos abandonos escolares e traumas que ecoam por gerações. Mas o Direito do Brasil – com sentinelas como as Leis 7.716/1989 e 14.532/2023, e faróis doutrinários como Bitencourt e Damásio – não se contenta com castigos; ele promete renascimento. O racismo, esse ácido que não se resume à tonalidade da pele, mas corrói os alicerces da convivência, só será domado por uma teia de alerta mútuo, delações destemidas e iniciativas que afirmem a diversidade. É assim que a dor atual, latejante como uma chaga fresca, se transmutará em bálsamo de equidade – para que o Brasil, em toda a sua tapeçaria plural, se revele, enfim, um lar verdadeiramente inclusivo para cada alma.

 

Referências

 

AGÊNCIA BRASIL. Menina de 8 anos vítima de racismo não quer mais ir à escola no Rio. Rio de Janeiro: EBC, 10 jun. 2024. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2024-06/menina-de-8-anos-vitima-de-racismo-nao-quer-mais-ir-escola-no-rio. Acesso em: 1 nov. 2025.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, 1988.

BRASIL. Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989. Dispõe sobre os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 6 jan. 1989.

BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 16 jul. 1990.

BRASIL. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 10 jan. 2003.

BRASIL. Lei nº 12.033, de 21 de setembro de 2009. Altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 22 set. 2009.

BRASIL. Lei nº 14.532, de 11 de janeiro de 2023. Altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, para equiparar o crime de injúria racial ao de racismo. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 12 jan. 2023.

BRASIL. Lei nº 14.811, de 5 de julho de 2024. Institui o crime de bullying e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 6 jul. 2024.

CARTA CAPITAL. Estudante negra é pisoteada e xingada de 'macaca' e 'cabelo de Bombril' por alunos em escola municipal de SP. São Paulo: Carta Capital, 21 mar. 2024. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/estudante-negra-e-pisoteada-e-xingada-de-macaca-e-cabelo-de-bombril-por-alunos-em-escola-municipal-de-sp/. Acesso em: 1 nov. 2025.

G1. Como escolas de elite da cidade de SP lidam com racismo, homofobia e preconceito sofridos por alunos bolsistas. São Paulo: Globo, 30 ago. 2024. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2024/08/30/como-escolas-de-elite-da-cidade-de-sp-lidam-com-racismo-homofobia-e-preconceito-sofridos-por-alunos-bolsistas.ghtml. Acesso em: 1 nov. 2025.

INSTAGRAM. Dois irmãos, uma menina de 13 anos e um menino de 15, foram vítimas de racismo nas escolas particulares em que estudam, em Niterói. Niterói: Instagram, 14 maio 2024. Disponível em: https://www.instagram.com/reel/C69A-yBMiAs/. Acesso em: 1 nov. 2025.

BITENCOURT, C. R. Tratado de direito penal: parte especial. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2020. v. 2.

JESUS, D. E. de. Direito penal: parte geral. 36. ed. São Paulo: Saraiva, 2020.

 

(*) Chico Araújo é advogado e jornalista, autor de “Quando Convivi com os Ratos” (Editora Social, 2024) e “Sombras do Poder: As Vísceras da Corrupção no Acre na Operação Ptolomeu” (Editora Social, 2025).