OPINIÃO: Tarifaço e soberania: atualidade e história
A soberania formal veio com a independência, mas a soberania efetiva é uma extensão do conceito de nação
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Por Alexandre Lyra
O tarifaço imposto pelo atual governo dos EUA é algo que pode impactar negativamente na economia brasileira, pois vai reduzir nossas exportações a esse país, e, consequentemente, afetar a produção de algumas empresas do setor primário e secundário, diminuindo a quantidade de emprego gerado por elas. A questão é que tudo isso será em pequena escala. Primeiro porque, como já coloquei em outro texto, todo comércio externo brasileiro não é expressivo, e os EUA são apenas uma pequena parcela dele, depois porque uma parte do estrago vai ser compensado por outros mercados que certamente serão buscados, e o próprio mercado interno vai absorver uma fração dessa produção, beneficiando os locais com alguma contenção de preços em algumas mercadorias. Mas o ponto que quero tratar aqui é mais amplo que esses efeitos de curto prazo: sua relação com a soberania.
O Brasil tem sido vilipendiado ao longo dos tempos por outras potências, a começar por Portugal, passando pela Inglaterra, que concentrou o capital e comandou o destino do mundo por um tempo, para chegar aos EUA, a partir do século XX. Nossos recursos tem sido remetidos para o estrangeiro, seja produtivamente, na forma de exportação de mercadorias primárias (com uso de mão de obra barata), ou sob a forma monetária, em pagamentos excessivo de juros, amortizações e royalties. Se tudo isso fosse em nome da construção de um projeto nacional, teríamos retorno na atualidade, mas o padrão foi manter a exploração internacional, sempre sugando recursos, drenando riquezas, de modo a sufocar qualquer tentativa de soberania, que implicaria em autonomia política e econômica.
A soberania formal veio com a independência, mas a soberania efetiva é uma extensão do conceito de nação: uma sociedade que comunga de uma identidade e constrói uma coletividade que compartilha de valores e interesses centrais. É uma unidade de povo e elite, sendo essa última uma parte do primeiro, portanto, pode haver país, mas não há nação quando se tem uma elite que se acha um segmento social próprio, separado da maioria da população. Trata-se de uma questão conceitual. Um enfrentamento a uma questão pontual, circunstancial, pode ser uma atitude com tom de soberania, porém a construção da soberania é bem mais profunda
Boa parte do mundo tem uma oportunidade com os tarifaços, uma vez que os EUA imperam em todo ocidente, disfarçadamente em regra, mas agora isso está escancarado, ninguém pode negar, mas nas periferias o problema é maior, pois historicamente nossas elites não têm compromisso com seu povo. Países centrais vão reforçar sua unidade histórica, enquanto as periferias têm uma oportunidade para discutir a formação/refundação nacional propriamente. Não devemos nos iludir que isso é missão simples, o que está enraizado dá muito trabalho para replantar, mas é necessário fazer essa discussão, ainda que agora, em pleno século XXI, seja mais difícil encaminhá-la.
Como alcançar uma integração produtiva satisfatória, que possibilite dar oportunidades dignas à população num tempo em que o avanço tecnológico comporta menos empregos de qualidade? Já tínhamos os desafios da reforma agrária, da atualização tecnológica, do fortalecimento do capital nacional, da complementação infra estrutural, e agora temos que fazer tudo isso com parâmetros tecnológicos que exigem muito menos trabalhadores, empurrando a geração de empregos para o setor de serviços, tradicionalmente gerador de renda menor. Como fazer isso num mundo altamente competitivo e em meio a uma onda liberal que enfatiza a liberdade individual?
Hoje os EUA têm o cafife de ser a potência líder, politicamente, economicamente e militarmente, entretanto essa condição está em franca decadência frente à ascensão de outros países (principalmente da China), e por esse prisma, é um bom momento para tentar se desvincular dessa subserviência histórica. Agora há outros mercados bem mais promissores que os EUA, e todos dispostos a negociar efetivamente, mas sobretudo devemos enfatizar o mercado interno. Para aproveitar essa oportunidade, portanto, só temos uma dificuldade: mudar a mentalidade de boa parte de nossa elite, presa a modelos ultrapassados.
A circunstância apresenta formalmente a questão da soberania: o STF aceita se dobrar para retirar a tarifa extra de 50%? O governo norte-americano do momento tem misturado questões políticas com questões comerciais, numa trama farsesca protecionista com risco de perdas internas, mas os poderes não vão ceder, e, embora essa seja uma questão pontual, serve para a começar a discussão em torno da soberania real. Qual nossa dependência tecnológica? Qual nossa dependência de recursos estratégicos? Como estamos administrando nossos recursos estratégicos? E principalmente: como vamos dar oportunidades dignas de trabalho para nossa população?
As universidades, por exemplo, têm um papel importante nesse processo, mas não é apenas com expansão desse sistema que se alcança resultados concretos. Nos últimos governos tivemos aumento significativo nas vagas ofertadas para estudantes, mas essa expansão foi feita desconectada da restruturação produtiva, não gerando absorção no mercado de trabalho em muitos casos e exportação de cérebros em outros. É preciso repensar a estrutura produtiva e a participação do capital nacional interno nela. Os governos tem que ter visão de curto e longo prazo. Políticas econômicas antigas consistentes deixam marcas duradouras, como a Embraer, a Embrapa, a Vale e a Petrobrás. Por outro lado, iniciativas privadas nacionais significativas tem de ser mais apoiadas, senão morrem, como ocorreu com as tentativas de produzir veículos (Gurgel, Troller, FMN, Puma, entre outras).
Professor Lyra
Um país soberano é um lugar de oportunidades para todos cidadãos, de negócios para os empresários e de bons empregos para os trabalhadores. Depois disso seguem outros fatores cruciais a serem considerados, o que implicaria implementação de políticas diversas para dinamização da economia, qualificação da mão de obra, investimentos estratégicos de tecnologia e de infraestrutura. Precisamos mudar radicalmente nossa estrutura econômica para almejarmos a condição soberana e daí alterar a pauta de exportação (deixar de ser primário exportador) e a competitividade real de nossas mercadorias para não depender de uma taxa de câmbio desvalorizada, que também promove acúmulo de divisas. É muito complicado, mas oportunidades ajudam. É pegar e largar as mãos do gigante imperial.
* Professor titular do departamento de economia da Universidade federal da Paraíba.