- Cadastre-se
- Equipe
- Contato Brasil, 11 de maio de 2025 13:13:35
( Publicada originalmente às 16h 45 do dia 23/11/2023)
(Brasília-DF, 24/11/2023) O ministro Gilmar Mendes, decano do Supremo Tribunal Federal (STF), na abertura da sessão do Supremo Tribunal Federal nesta quinta-feira, 23, fez um “duro” pronunciamento por conta da decisão dos senadores e senadoras que aprovaram uma Proposta de Emenda Constitucional que limita decisões monocráticas no STF e nos tribunais federais.
Mendes disse que a Supremo Corte não aceita intimidações.
“Cumpre dizê-lo com a serenidade e com o desassombro que esse tipo de investida exige de todos nós, membros desta Casa multicentenária: este Supremo Tribunal Federal não admite intimidações.”, disse.
Veja a íntegra da fala de Mendes:
Senhor Presidente, Ministro Luís Roberto Barroso,
Na data de ontem, 22 de novembro de 2023, o Senado Federal
aprovou, por quórum ligeiramente acima do imposto pela Constituição, a
PEC 8/2021. Trata-se da ressureição de um cadáver outrora enterrado, eis
que o seu teor é mera reprodução de proposta de emenda à Constituição
que já havia sido rejeitada pelo Parlamento em 2020 (PEC 82/2019).
Originalmente, a PEC 8/2021 possuía, dentre outros pontos, o escopo
de (i) estipular prazos para pedidos de vista e para conclusão de
julgamento, (ii) proibir decisões monocráticas em ações do controle
concentrado e contra atos dos Presidentes da República, do Congresso
Nacional, do Senado Federal e da Câmara dos Deputados, (iii) aumentar o
quórum necessário para tomada de decisões que interfiram na tramitação
de proposições legislativas, que afetem políticas públicas ou criem
despesas para quaisquer dos Poderes.
É importante ressaltar que os diálogos institucionais, em qualquer
Estado de Direito, são sempre bem-vindos e fazem parte da democracia,
desde que permeados por atitudes ponderadas e sóbrias, estando, nessa
hipótese, amparados em procedimentos advindos da teoria dos poderes
implícitos dos checks and balances.
Com efeito, a jurisprudência desta Suprema Corte, em relação aos atos
praticados pelo Poder Legislativo – matéria claramente interna corporis –,
acolhe a fórmula da separação dos poderes, tradicionalmente citando-a de
forma expressa como vetor de concretização do sistema constitucional de
freios e contrapesos com deferência à própria independência e relevância
do Poder Legislativo. Mesmo quando isso não ocorre por questão de
economia de sentido, a menção à separação dos poderes encontra-se
implícita na “norma do caso” formulada pela decisão da Corte, a servir,
ainda, como paradigma a ser observado por deliberações jurisdicionais
futuras.
A mesma postura deve ser igualmente observada de forma inversa, a
impedir que Parlamento pretenda imiscuir-se nas normas de organização,
de procedimento decisório e julgamento do STF.
Pontuo que a separação de poderes é cláusula pétrea (art. 60, § 4º, III,
da CF), e não pode ser objeto de emenda constitucional que busque aviltála, sob pena de clara violação do pressuposto básico do exercício de um
dos Poderes da República. Vale dizer, atenta contra a Constituição
qualquer atitude do Poder Legislativo que vulnere o postulado da
separação de poderes em acintoso menoscabo às atribuições essenciais do
Poder Judiciário (entre as quais se encontra o controle de
constitucionalidade).
O Poder Judiciário livre, independente e ciente de seu papel
institucional é pressuposto para o adequado adimplemento dos objetivos
da República, para fiel cumprimento dos postulados em que se fundam o
Estado de Democrático de Direito e para o devido respeito à cláusula
constitucional da separação de poderes.
É relevante vaticinar, mesmo na atual conjuntura histórica de nosso
país, como já o fazia nosso sempre Decano, Ministro Celso de Mello, que
“esta Corte Suprema, atenta à sua alta responsabilidade institucional, não
transigirá nem renunciará ao desempenho isento e impessoal da jurisdição, fazendo
sempre prevalecer os valores fundantes da ordem democrática e prestando
incondicional reverência ao primado da Constituição, ao império das leis e à
superioridade ético-jurídica das ideias que informam e animam o espírito da
República”, pois, continua Sua Excelência, “sem juízes independentes, não há
cidadãos livres”, sendo inquestionável que “inexiste na história das sociedades
políticas qualquer registro de um Povo que, despojado de um Judiciário
independente, tenha conseguido preservar os seus direitos e conservar a sua própria
liberdade”.
O fato é que este Supremo Tribunal Federal, sempre atento às suas
responsabilidades institucionais e ao contexto que o cerca, está preparado
para enfrentar, uma vez mais e caso necessário, as investidas desmedidas
e inconstitucionais provenientes, agora, do Poder Legislativo.
Lembro aos Ministros: recados da rua chegam a todos nós dando
conta de que o projeto de emenda aprovado é mal menor, tendo sido
endereçado a esta Casa agora como forma de impedir possíveis reformas
ainda mais drásticas ao funcionamento da Corte, ou, mesmo, a instauração
de processos de impeachment contra membros deste Tribunal.
No particular, senhor presidente, é preciso altivez para rechaçar esse
tipo de ameaça.
Cumpre dizê-lo com a serenidade e com o desassombro que esse tipo
de investida exige de todos nós, membros desta Casa multicentenária: este
Supremo Tribunal Federal não admite intimidações.
De resto, cabe lembrar a estes propagadores do caos institucional
que os processos de responsabilidade dos Ministros desta Corte hão de
estar submetidos ao crivo judicial garantidor do devido processo legal,
impedindo que acusações mambembes turvem a independência judicial –
cânone inafastável do Estado democrático de Direito.
Ainda, é desnecessário dizer que, ao realizar essa forma de controle,
este Tribunal certamente não estará inovando em sua atuação jurisdicional,
pois foi esse mesmo proceder que, num resgate da boa política, afastou do
cenário institucional a ameaça a inúmeros agentes públicos representadas
por tantos falsos heróis como aqueles que compuseram a chamada
“República de Curitiba”.
Quanto ao seu conteúdo, a PEC 8/2021, aprovada na data de ontem,
não possui – em absoluto - qualquer justificativa plausível, notadamente
em face das alterações regimentais realizadas por este Supremo Tribunal
Federal (ER 58/2022), a demonstrar a ausência de qualquer vácuo
normativo que a legitime. Assim, é forçoso reconhecer que tal tentativa de
alteração constitucional interfere direta e incisivamente no ato de
julgamento, na validade e na eficácia das decisões do Poder Judiciário, em
especial deste STF.
Com o devido respeito, chega a ser curioso, quiçá irônico, que após
os bons serviços prestados por esta Suprema Corte no decorrer dos últimos
anos, especialmente no curso da pandemia, esta instituição fundamental
do Estado de Direito seja o primeiro alvo de alterações – casuísticas –
engendradas no seio do Poder Legislativo, sem qualquer reflexão mais
vagarosa e acurada, e que conte com a participação do principal ator
institucional afetado.
O trabalho desenvolvido por este Tribunal não só foi fundamental
para enfrentamento da pandemia, como foi e continua sendo de
importância singular para o enfretamento do autoritarismo, motivos pelos
quais, certamente, desagradou muitos atores que sobrevivem em meio ao
caos.
Nesse sentido, causa perplexidade que o texto aprovado pelo Senado
Federal tenha sido cirúrgico ao proibir decisões monocráticas no curso de
ações que questionem políticas públicas - como facilitação do acesso a
armas de fogo pela população (ADIs 6.675, 6.676, 6.677, 6.680 e 6.695, Rel.
Min. Rosa Weber, decisão monocrática, DJe 05.09.2023) ou desmonte de
políticas ambientais (ADPF 623, Rel. Min. Rosa Weber, decisão
monocrática, DJe 07.01.2022) - mas não tenha previsto idêntica vedação
para ações constitucionais que são usualmente manejadas no interesse de
agentes políticos investigados em procedimentos criminais. Curiosamente,
a PEC não impede decisões monocráticas em habeas corpus, mecanismo
muitas vezes utilizado pela defesa de agentes políticos que, ontem mesmo,
se articularam para restringir as competências da Corte Constitucional.
É necessário ter em perspectiva que, caso a proposta que limita as
decisões monocráticas já estivesse em vigor, o Tribunal teria sido impedido
de interromper políticas públicas altamente lesivas para a sociedade. É o
caso da abertura indiscriminada do comércio durante o auge da pandemia
(ADPF 672, Rel. Min. Alexandre de Moraes, decisão monocrática, DJe
15.04.2020) e do estímulo a tratamentos ineficazes de combate ao
coronavírus (ADPF 669, Rel. Min. Luis Roberto Barroso, decisão
monocrática, DJe 02.04.2020). Não é necessário muito esforço
argumentativo para demonstrar os danos que teriam sido impostos à
sociedade, caso a Corte estivesse limitada, num passado recente, pelas
amarras burocráticas desta PEC.
Por fim, senhor Presidente, é preciso deixar claro à Nação Brasileira:
este Supremo Tribunal Federal não se curvou à ditadura militar nas quase
três décadas de escuridão que mancham a história nacional; este Tribunal,
num passado recentíssimo, ainda presente entre nós por força da memória
dos mais de setecentos mil mortos na pandemia da COVID, não sucumbiu
ao populismo iliberal responsável pelo trágico 8 de janeiro – o dia da
Infâmia, conforme a sempre lúcida visão da Min. Rosa Weber; Esta mesma
Corte, senhor Presidente, não haverá de submeter-se ao tacão autoritário –
venha de onde ele vier, ainda que escamoteado pela representação de
maiorias eventuais.
As ditaduras são sempre deploráveis, e elas podem existir tendo
como marco o Executivo ou, também, o Legislativo. Hans Kelsen já
ensinava, em 1928, que a jurisdição constitucional era a matriz principal de
defesa das minorias parlamentares contra abuso da maioria.
Afinal, sem uma Corte Constitucional livre e independente, não há
democracia nos termos exigidos pela Constituição de 1988. Estou certo,
Presidente, que os autores desta empreitada começaram-na travestidos de
estadistas presuntivos, e a encerram, melancolicamente, como inequívocos
pigmeus morais.
( da redação com informações de assessoria. Edição: Genésio Araújo Jr.)