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Humberto Azevedo
  • 28/10/2016 13h24

    Marcas do passado (texto literário e fictício)

    Publicado originalmente em 24 de outubro de 2016 no jornal Vale da Eletrônica

    Após mais de 30 anos ter partido da terra a que ele prometera a si próprio nunca voltar, Ferdinand Coelho – sabe-se lá por quais motivos – voltara a ter lembranças de sua tenra infância no lugar ao qual sempre fora sinônimo de pesadelo para ele. A sua condição enquanto indivíduo não era nada para àquela gente. Morou ali por 19 anos. Viveu ali densamente o seu maior e mais profundo martírio. Sem amor, sem esperança, sem um mínimo de solidariedade. Quando assistiu seus entes mais próximos – todos – serem enterrados após uma morte trágica devido às desgraças naturais causadas pelos seus semelhantes, decidira que não havendo nada e nem ninguém que lhe apetecesse naquele lugar sórdido e que somente aumentava seu sofrimento, era hora de partir.

    Assim numa madrugada fria de inverno colocou todas suas poucas coisas numa mala que tinha sido emprestada alguns anos antes e pôs-se no ônibus que lhe levaria a cidade-mor daquele continente que séculos antes tinha sido invadido por representantes de ladrões que se diziam representar certo rei além-mar. Seu povo raptado do outro lado da imensidão oceânica fora obrigado a labutar de sol a sol acorrentados em si mesmos para garantir a lavoura de tempos sem fim que até ele mesmo não entendia ser o que era. Tudo que possuía era um maço de uma centena de notas de dinheiro que reunia ali todas as suas economias de uns três anos trabalhados como garoto entregador de um escritório que apesar da fama apregoada naquele local não passava de uma espelunca que fazia inventários contábeis e jurídicos para meia dúzia de comerciantes da localidade.

    Sua repentina partida preocupara não mais que outra meia dúzia de pessoas que por alguns poucos dias se perguntavam: “Foi para onde aquele ...”. Não o tratavam na primeira pessoa. Quando muito era apenas o filho da dona Dores Coelho e do seu Coelho. Isso para os vizinhos mais próximos. Para a grande maioria daquele lugar que se imagina até hoje uma cidadezinha pacata do interior era apenas um moço curioso metido a intelectual que tinha como rotina cotidiana ser um leitor de jornal, de revistas e de uns parcos livros que eram disponibilizados na revistaria que tentava em vão assumir o posto de uma livraria que ali nunca existiria.

    Livros mesmos poderiam ser apenas encontrados por ele – curioso como sempre – na biblioteca municipal. Mas a falta de apreço ao conhecimento daquela gente fazia migrar de tempos em tempos o espaço que deveria ser sagrado para proteger obras literárias como uma edição antiquíssima de “Os Lusíadas” que não se sabe como foi parar nas estantes da casa do desembargador Nélio da Fronteira, uma imponente autoridade intelectual local que tinha sido um razoável juiz do Trabalho lá pelas terras baianas. Os melhores livros eram encontrados nas bibliotecas da faculdade de Ciências e do colégio Frederico Montágua Celeste – FMC. Em que por obvio Ferdinand nunca fora muito bem vindo. A não ser quando ali se encontrava dona Geralda.


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